2006/04/18

A Caminho Do Abismo.

Publicado também em Editorial
Fomos arrastados, mais alguns passos, a caminho do abismo.

Para quem tenha um mínimo de objectividade, de noção das coisas e suas consequências, a nossa realidade social (reflectida nas notícias) é um constante sobressalto.
Comecemos pelas notícias, relativas a este acórdão.
A notícia é referida assim: “Supremo iliba mulher acusada de maus tratos”.
Todos os órgãos de comunicação social falaram no assunto, acentuando que: “Supremo diz que são lícitos "correctivos" corporais dados a crianças deficientes”;
ou: “O Supremo Tribunal de Justiça considerou como "lícito" e "aceitável" o comportamento da responsável de um lar de crianças com deficiências mentais, acusada de maus tratos a vários menores”;
Ou ainda: “O Supremo disse, aliás, que fechar crianças em quartos é um castigo normal de um "bom pai de família". E que as estaladas e as palmadas, se não forem dadas, até podem configurar "negligência educacional".

Levantou-se, e bem, um coro de protestos contra esta fundamentação absurda.
Por exemplo: “A CONFAP (Confederação Nacional das Associações de Pais) considera totalmente desajustada a análise exposta no acórdão do STJ ao justificar como lícitas determinadas acções violentas praticadas sobre menores as quais são atentatórias da integridade física e psíquica das crianças envolvidas;
Ou: “A Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados classificou hoje como «impróprio» e «muito perigoso» o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que considerou lícitos os castigos corporais aplicados pela responsável de um lar a crianças deficientes”.

Repondo a verdade dos factos (percebida da leitura do acórdão):
1 – A empregada acusada de maus-tratos NÃO foi “ilibada”, como se depreende, mal, das notícias. Tinha sido condenada a 18 meses de cadeia, com pena suspensa por um ano. Ambas as partes recorreram (M.P. e Defesa), para o STJ, que indeferiu ambos os recursos, mantendo a sentença.
2 – Segundo a sentença: A arguida é de modesta condição social. Actualmente exerce funções de empregada de limpeza no Centro de Actividades Ocupacionais. Tem como habilitações literárias a 4ª classe. No entanto: A arguida residia no Lar, passando aí todo o dia e aí pernoitando, trabalhando das 7h às 23h e às vezes durante a noite, quando era necessário ajudar a colega que fazia o horário nocturno, nomeadamente por algum utente estar doente. Só a partir de Novembro de 1991 a arguida passou a ter uma folga às 3ªs feiras, pernoitando uma noite fora do Lar. Tinha a seu cargo cerca de 15 utentes.

Donde devemos concluir que a acusada de maus tratos é tão vítima como as suas vítimas… Ou seja: Os responsáveis pela situação criada, quem lhe atribuiu funções para cujas não tinha preparação, nem capacidade, que eram exercidas em condições desumanas é que devia ter sido julgado… e condenado. Mas, neste país é assim: quem se lixa é o mexilhão, sempre.
Este tipo de situações não podem continuar, mas não será, certamente, crucificando injustamente a mulher que a situação se resolve ou melhora. Portanto, e para que conste, concordo com a decisão do Supremo em não agravar a pena…
Até porque já foi afastada da função… Estou a pensar no caso do Bibi (Casa Pia), que foi reconduzido pelo STA, quando a instituição tentou afastá-lo das crianças que molestava…

Mas eu disse, acima, que “Levantou-se, e bem, um coro de protestos contra esta fundamentação absurda”.
Porque a acusada é pessoa sem formação, sem instrução, mas o mesmo não se pode dizer dos juízes do STJ.
Concordo que não tenha sido agravada a condenação, mas DISCORDO, em absoluto, dos termos do acórdão, das justificações, absurdas e reaccionárias que, como tem sido referido e muito bem, se destinam a fazer “jurisprudência”, que é como quem diz, servir de referência para julgamento de casos semelhantes, de violência sobre crianças ou pessoas diminuídas e dependentes.
Aliás, no mesmo dia da publicação destas notícias sobre o acórdão, o assunto foi discutido na “Antena Aberta” do programa da manhã RDP1, onde um ilustre causídico esclareceu que esta é a regra, nas decisões dos nossos tribunais, sobretudo em casos que envolvam professores… de cujos tinha experiência…
Esta é uma situação aberrante que justifica, plenamente, o alarme social que causou. Evidencia, mais uma vez que, neste país, as decisões da justiça estão entregues ao pior tipo de pessoas. Isto é intolerável, a todos os títulos, este tipo de coisas não podem continuar perante a passividade de todos.

Os nossos juízes têm a mania de fazer, de cada decisão judicial, uma peça de retórica, de literatura (neste caso de péssima literatura), aproveitando para se exibirem e, ao mesmo tempo, para propagandearem as suas ideias e conceitos, sociais e filosóficos, quando podiam e deviam se cingir ao essencial, poupando o seu tempo e o dos outros. As decisões judiciais têm, via de regra, mais do dobro da extensão que se justificaria… Ao menos (e já que se dão ao trabalho de tanto escrever) é legítimo exigir que se abstenham de vincular (fazendo jurisprudência) ideias e ideais absurdos, reaccionários, retrógrados, primários, imbecis e incultos, como se faz neste acórdão. Podem aproveitar para fazer pedagogia positiva... Ou então podiam limitar-se a dizer: nas circunstâncias actuais não se provou que os actos, condenáveis, tenham sido praticados com premeditação ou malvadez... devendo ainda ter-se em conta as condições de trabalho e a ausência de conhecimentos e formação adequados... e pronto, estava tudo bem!

Mas não! Os senhores juízes dizem:
“Os actos imputados à arguida devem, a nosso ver, ser tidos como lícitos”.
E aqui “a coisa” muda de figura…
O tribunal pode atentar às circunstâncias específicas e não criminalizar (por ausência de malvadez) os actos; o que não pode, EM CIRCUNSTÂNCIA ALGUMA, é considerá-los “lícitos”, generalizadamene adoptáveis, ao arrepio da lei, abrindo um precedente grave de impunidade e anulando, assim, as garantias das vítimas, expressas na lei.
Vão mais longe os senhores juízes: “Na educação do ser humano justifica-se uma correcção moderada que pode incluir alguns castigos corporais ou outros. Será utópico pensar o contrário e cremos bem que estão postas de parte, no plano científico, as teorias que defendem a abstenção total deste tipo de castigos moderados”.
Aqui existem duas questões GRAVES a analisar:
1- Em primeiro lugar, e impõe-se dizê-lo com todas as letras, educar, desde há muito que não é (nem nunca foi) reprimir ou maltratar, bater. Esta é uma das questões em que existe, nitidamente, um abismo de mais de um século entre o estado de desenvolvimento filosófico e científico (do conhecimento, dos conceitos) e a prática social. Temos de reconhecer isso e também temos de reconhecer que SÓ POR ISSO, subsistem os castigos corporais correctivos (que tão prejudiciais são à sociedade); por ignorância e outros constrangimentos criados pela vivência em sociedade, pelo não funcionamento das instituições, etc.
2- Ou seja, os senhores juízes impõem à sociedade os critérios da sua própria ignorância (a que, presunçosamente chamam "ciência"), ao arrepio da lei, ao invés de actuarem e decidirem a favor do progresso, do desenvolvimento, da actuação esclarecida de todos os agentes da sociedade... É lícito perguntarmo-nos: que tipo de pais serão (ou terão sido) estes indivíduos?

Há ainda um outro aspecto que importa escalpelizar!
Voltando ao acórdão; dizem os senhores juízes: “Qual é o bom pai de família que, por uma ou duas vezes, não dá palmadas no rabo dum filho que se recusa ir para a escola, que não dá uma bofetada a um filho que lhe atira com uma faca ou que não manda um filho de castigo para o quarto quando ele não quer comer?”
São tão bárbaros e primários os conceitos aqui subjacentes e são usados de forma tão absurdamente demagógica e falaciosa que nem sei por onde começar!

Comecemos pelo absurdo! Já disse acima que “educar não é maltratar”; educar é, acima de tudo ensinar, mas principalmente dar bons exemplos e incentivar à assumpção de responsabilidades. Por isso não imagino que os filhos normais, dos pais (educadores) normais, andem por aí, a torto e a direito a “atirar facas aos pais”, pelo que a inclusão deste exemplo num parágrafo que pretende “colher legitimidade da experiência generalizada” é absurda demagógica e falaciosa, pelo que deve o conteúdo, genérico, do parágrafo, ser analisado sem ele (exemplo), porque este não é generalizável.
Atenhamo-nos, então, à figura do “bom pai de família”:
- "Dá palmadas no rabo dum filho que se recusa a ir para a escola"? É o pior que um pai de família pode fazer para a educação do seu filho e o melhor contributo que dá para que esse filho se transforme em mais um “caso crónico e inexplicável de insucesso escolar”. Isto é educar? Ir para a escola pode e deve (tem de) ter outro tipo de “motivações”… Talvez a escola possa ajudar muito?! O que é que acham?!
- Pode-se tolerar aos pais que, em algumas ocasiões e circunstâncias excepcionais, apliquem castigos corporais, pensando no bem (no melhor) para os seus filhos? Não adianta negá-lo, porque o facto existe. E por isso não se pode criticar a constatação do facto, feita pelo acórdão.
A melhor educação provém do exemplo, mas todas as pessoas têm defeitos e, na convivência familiar, íntima, é impossível aos adultos esconderem os seus defeitos às crianças (que são bem capazes de abusar), justificando que os pais “percam a cabeça”. Ainda assim (e mesmo não querendo ser mais papista do que o papa, nem imitar os senhores juízes, em matéria de “dar lições”) eu aconselharia os pais a, sempre que isso acontece, optarem por ter uma conversa séria com os filhos, se desculparem (assumirem os seus erros) e fazerem ver o quanto foi errada (e oportunista, má, socialmente recriminável) a atitude do menor. Mas sempre conversando… Quem nunca experimentou não percebe o quanto uma atitude dessas pode ser benéfica para ambos (mantendo abertas as portas do diálogo e preservando a boa relação familiar) e a influência extraordinária que tem na boa educação e crescimento intelectual das crianças
Concluindo: não se podendo “criticar a constatação do facto, feito pelo acórdão”, deve-se denunciar como falacioso o exemplo, porque a questão em apreço não se insere nas relações familiares; não se trata dum pai de família. É que o “bom pai de família”, dá, em primeiro lugar, alimentos, cuidados de saúde, carinho… o que for necessário; portanto podem e devem se reservar o direito de aplicar castigos se e quando entender necessário. Até porque, do “bom pai de família” espera-se e compreende-se que actue sempre pensando no bem dos filhos, mesmo que o faça inadequadamente, desajeitadamente, erradamente, por ignorância ou obscurantismo… Às restantes pessoas, mormente funcionários de instituições (quaisquer que elas sejam) não é exigível que provenham as necessidades básicas dos menores, nem que lhes dêem carinho, pelo que também não lhes pode ser outorgado o “direito” de castigar, ainda por cima ao arrepio da lei (já bastam os abusos – e são muitos – que a lei permite).
Mas é assim, com este tipo de falácias absurdas, com estas inversões de critérios ou generalizações cretinas que, na nossa sociedade, nos vendem, continuamente, “gato por lebre”, tentando arrastar-nos para trás, para a legitimação de atitudes retrógradas e incultas, primárias, reaccionárias. A lógica desta gente é, toda ela, um perfeito absurdo. Acho que são pessoas que nem sequer sabem pensar (nunca devem ter experimentado), mas são “incontestáveis” e querem-se incontestados…
Ou seja: o que se pode depreender disto tudo é que os senhores juízes aproveitam os acórdãos para nos intoxicarem com o pior tipo de literatura, para divulgarem (e imporem) os seus conceitos e critérios absurdos, reaccionários, retrógrados, fascistas, ignorantes. No essencial, este acórdão é uma peça de propaganda reaccionária (abusivamente a fazer jurisprudência) e merece todo o repúdio. Os senhores juízes devem compreender (e aceitar) que vivemos em democracia e que, em democracia, os conceitos e critérios políticos adoptados pela sociedade, (que podem fazer jurisprudência e devem ser respeitados também pelos juízes), têm de ser sancionados pela escolha dos cidadãos, pelo voto.

Este comportamento abusivo e prepotente, ditatorial, é o mesmo que vemos ser adoptado pelos, auto-intitulados, partidos do poder, cuja expressão eleitoral é insignificante, mas que se servem dos cargos a que lhes dão acesso para imporem à sociedade os seus desmandos, os seus “critérios”, sem que estes tenham sido, alguma vez, aceites em escrutínio…

Perante um caso tão grave esperar-se-ia que “os representantes do povo”, os Deputados, eleitos para garantirem a democracia e nos representar, erguessem um clamor de protestos e não deixassem prevalecer este tipo de abusos de poder, de infâmias que nos fazem retroceder muitas décadas; deviam fazê-lo, se não, por indignação própria, ao menos em nosso nome, em nome da sociedade e da democracia ultrajadas e violentadas.

Mas… O que fazem os deputados?
Isto: “119 deputados faltaram às votações na sessão do Parlamento de quarta-feira, dia 12 de Abril” sendo 50 do PSD, 49 do PS, 5 do CDS, 4 do PCP e 1 do BE. A maioria destes deputados, todavia, assinou o livro de presenças, fraudulentamente… Portanto não se pode esperar que se indignem com atentados contra a democracia e violações das regras da democracia, quando fazem exactamente o mesmo ou pior.
Quem nos acode? Quem nos salva? A nós que nem sequer podemos dizer livremente o que pensamos, nem podemos (não estamos autorizados) contribuir decisivamente para resolver os nossos magnos problemas sociais; nem voz temos…

Não é possível resolver os problemas deste país enquanto duas das mais importantes e influentes instituições são e continuarem a ser protagonistas de escândalos permanentes e persistentes… Todos somos capazes de lembrar, de memória, uma infinidade de casos ilustrativos, para ambas as “instituições”.
Mas parece que, mais uma vez, ambos os crimes, ambos os abusos irão ficar impunes, a evidenciar bem que o mal é generalizado, ao nível dos políticos e restantes responsáveis deste país…

Quanto aos deputados temos ainda de ter em conta que há 87, entre eles, que nem sequer foram eleitos, não estão lá a fazer nada. Para além de eu achar (muita gente acha) que o número máximo de deputados é excessivo, devia ser reduzido e devia ser valorada a abstenção.
O parlamento (que assim se percebe inútil e depravado, pernicioso) gasta, ao erário público: “A Assembleia da República prevê gastar, em 2006, 13,3 milhões de euros com os salários, subsídios de Férias e de Natal e ajudas de custo aos 230 deputados, verba que representa cerca de 10 por cento da despesa corrente total de quase 141 milhões de euros”.
Se já tivesse sido valorada a abstenção, se só fossem eleitos os deputados realmente votados, poupar-se-iam cerca de 5 milhões de euros, este ano, com a ausência dos 87 deputados que não foram eleitos.
Mas se, além disso, o número máximo de deputados fosse reduzido para 150, poupar-se-iam 7 633 mil euros… E, afinal, ficavam menos protagonistas para os escândalos, eram menos uns quantos inúteis a viver à conta do orçamento.
Já imaginaram a enorme quantidade de problemas cuja resolução poderia ser despoletada com o uso adequado dessa verba (e doutras igualmente malbaratadas, indevidamente apropriadas por essa gente)?
Mas, ao invés disso: de vermos a resolução dos nossos problemas aproximar-se, continuamos reféns de toda esta perfídia, a ser arrastados, passo a passo, para o precipício. A semana passada foram mais dois passos nesse perverso caminho…